3 de nov. de 2009

Trinta gramas de condimentos


Foto de Miguel Valle de Figueiredo


Eram exactamente trinta gramas de ervas de condimento. Nem 29gr, nem 31gr, a medida exacta do sabor perfeito para aquela combinação de alimentos que estava a preparar. Olhava para o tacho e sabia, gulosa do resultado final, que a medida perfeita das coisas se acha no equíbrio certo entre os diversos sabores. Na vida também era assim e o excesso, ou falta, dos condimentos certos ou das suas medidas exactas é que lhe tinha feito desviar-se do caminho fácil da felicidade pelo prazer de usufruir de todos os sentidos.

Uma mão cheia de flor-de-sal era a medida incontestada para trazer o sabor perfeito à complexidade da receita que lhe saía das mãos. Tantos ingredientes em mãos cheias ou colheres mal medidas, sempre essas na proporção correcta para um apuramento requintado do paladar, já não precisava das colheres-medida ao grama que lhe davam a certeza da matemática química estar a ser respeitada até ao mais ínfimo detalhe. Apuraram-se as mãos ao longo do tempo, transformando-se em medidas precisas da dimensão do espaço e do sabor da vida, e cruzavam-se agora velozes sobre as frigideiras, facas afiadas e tábuas de corte.

 A vida, estendida na tábua dos vegetais, depois de ter passado pela tábua das carnes e evitado a dos peixes por uma mera questão de odor, dissecava-se-lhe agora entre os dedos à velocidade da lâmina que usava com destreza com a mão direita. A esquerda, essa, agarrava firmemente nas pontas da existência por forma a deixar à irmã gémea o espaço de manobra para a precisão cirúrgica e estética do corte da própria vida às rodelas e aos cubos.

Parou. Estancou se súbito a meio do cozinhado e a panela deitou por fora a água a ferver, borbulhando furiosamente e espirrando o calor do inferno por cima dos bicos do fogão e dos seus pés descalços. Soltou um ai de dor intensa, um gemido gritado dos confins da alma e da superfície da pele assim atacada, e calou-se logo de seguida, faca na mão direita, pontas da existência soltas pela esquerda e tomando os seus próprios rumos independentes da sua vontade. Ficou, ali, quieta, muda de querer, olhando para a colher de medidas certas que enchera de condimentos, e largou então uma lágrima salgada para cima da receita que tanto trabalho lhe dera a preparar.

Sabia em teoria que ainda se podia salvar o jantar. Aliás, sabia que mesmo com os pés queimados e a alma manchada de dor conseguiria transformá-lo num banquete requintado e abundante de iguarias ainda por descobrir. Largou então a tábua de corte e sentou-se num canto da cozinha mal iluminado e fechou os olhos, massajou os pés queimados com meio tomate e duas gotas de alfazema e tentou sentir o alívio da cura instantânea dos remédios milagrosos. Um olhar à cozinha inundada de água a ferver e rodelas e cubos espalhados no chão, especiarias derramadas nas bancadas e o desalento instalou-se. Calçou-se, saiu de casa descendo pelas escadas de incêndio, e foi directa a um McDonald’s.

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