5 de nov. de 2009

Os cotovelos do rio manso


Tenho os olhos caídos de cansaço, mal se abrindo, subjugados pelo carrego da noite e das horas prolongadas de um dia pesado. Mal vejo, núvens de porcaria acumulada nas lentes de contacto que não tenho paciência de ir tirar, um corredor para calcorrear de ida e volta dá tanto trabalho a esta hora da madrugada em que só quero arrastar-me para a cama - mas não o faço. Inquieta, fico-me neste sofá que me dobra as costas e me envelhece, cão nos pés, janelas abertas a gritar ventania para dentro de casa e aqui me fico, abrindo este écran branco a que tento dar vida para que me dê em troca respostas.

Tema tantas vezes falado e maturado até ao enjoo, os cotovelos dos caminhos da vida que quinam violentamente mal se espera uma descida suave e feliz, e lá se firmam as curvas abruptas, socos no estômago, vendavais de tornados densos. Patins, são como as rodas dos patins que nos fazem deslizar rápidos e, no cimo do declive, abrangemos todo o vale com o nosso olhar e temos um vislumbre do futuro, e até dos cotovelos do rio que tentamos contar e mapear. Tão rápido é o clarão que o queremos reter no instinto e o transformamos numa espécie de sexto sentido, ou vice versa, nem sabemos bem. Lá está, o destino, a vida que se desenrolou clara e límpida à frente dos olhos, de súbito, aquele clarão que torna as cores vivas e os contornos precisos e nos faz ver as fronteiras de tudo, o princípio e o fim. Omniscientes por um segundo, regressamos em queda livre à escuridão relativa em que vivemos todos os dias e cá estamos, no sofá sentados, a escrever para um écran branco que nos responde aquilo que queremos que nos responda. É bom este controlo das palavras, das letras, que nos obedecem, esticam e encolhem à nossa mercê, as letras infinitas que se compõem, juntam e separam ao sabor dos dedos e da mente rápida. E a vida regressa aos retalhos que vamos cosendo em linhas finas de seda, leves de algodão ou grossas de estopa, pontos mais ou menos perfeitos que vamos rematando, agulhas de aço inoxidável a picar a carne dos dias e a dar-lhe sentido.

Inquieta, sei que estou inquieta neste pantanal que é agora pantanal, amanhã talvez já chão seguro, ontem outra coisa qualquer. Pequena que sou, a grandeza escondida no deslizar dos dias mas lá está, a grandeza, vou lançar-lhe a mão e fechá-la firme debaixo dos nós dos meus dedos. Ah, o mundo tão vasto e pequeno, emoldurado num LCD e debitado à força e a cores para dentro dos meus olhos. Que me importa o mundo nestas noites em que me sinto aquela ilha rodeada de mar revolto e escuro, salpicado de rochedos e sem outra terra à vista, apenas a ilha negra de vegetação rasteira e batida pelo vento.

Mas depois fecho os olhos e vejo o meu rio. Os cotovelos do rio manso, a paisagem deslumbrante e quieta de amor e placidez, detenho-me nos cotovelos do rio para o amar, abraçando a paisagem bela e perfeita que este clarão de omnisciência torna tão clara, óbvia, minha. Comovo-me com os cotovelos do rio manso que é o meu e não os temo porque a cada esquina do rio a paisagem surpreende ainda mais, carregada de esplendor e agridoce, aventura e ousadia, lances de vida sem jogo e que se tece num feitiço de amor transformado em tapeçaria perfeita de retalhos harmoniosos serzidos a fio de seda selvagem.

O rio, o meu rio manso.


21 de Agosto 2009

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