5 de nov. de 2009

O grilo


“Estás a escrever para quê?”, pergunta-me o Gilo Falante.

“Olha, nem sei. Talvez para fugir momentaneamente às pilhas de coisas que tenho para arrumar e pôr na ordem certa.”

“Não percas tempo, mexe-te e põe o calcanhar no chão.”

“Grilo, não me maces. Deixa-me escrever à minha vontade: é sempre uma forma de arrumar e pôr na ordem certa os meus pensamentos excessivos. A seguir arrumo os papéis e logo de seguida a vida.”

O Grilo olha-me, trocista, bem sabendo, como boa consciência que é, que tudo isto é um fogo fátuo passageiro que a memória do tempo irá apagar na altura devida.

Lá em baixo no vale a névoa já se dissipou. Olho em frente e vejo pilhas sobrepostas de assuntos por tratar e falta-me a vontade para pôr o calcanhar no chão e mãos à obra. Consola-me este sol de tarde estival e a luz maravilhosa que me deita à casa, avivando as cores e o sentido às coisas. O Grilo olha para mim e não desprega os olhos, e faço então um exercício consciente de gratidão e certeza e disponho em filas alinhadas as prateleiras do cérebro, cada uma com meia dúzia de caixas etiquetadas. Compartimentos de passado, presente e futuro, em alguns a tinta já se apagou, a tinta da etiqueta que o identifica como pertencendo a alguma circunstância importante da minha vida.

Como se houvesse circunstâncias importantes nas vidas das formigas, ou das carochas. Não gosto de me comparar a uma formiga porque as formigas gostam de carreiros e eu não. A vida das carochas é-me particularmente desconhecida, até porque, ao contrário das formigas e, já agora, também das abelhas, não tenho dado notícia de documentários na televisão extensos e bem explicados sobre a vida destes insectos de casca dura e brilhante que me passam por cima da toalha da praia enquanto dormito ao sol meio enterrada na areia. Já com os escaravelhos a coisa é diferente, ficando para sempre impresso na minha memória a bizarra mania que têm de empurrar bolas perfeitas de esterco pelo chão afora. Mas as carochas, não, não sei nada sobre as carochas pelo que me posso muito bem identificar com elas, pois se à partida nada se sabe de um assunto, temos o campo livre para inventarmos a nosso bel-prazer o que quisermos sobre o mesmo.

Assim, as circunstâncias das carochas não me parecem especialmente importantes à luz da dimensão da vida e da tragédia humana. Vivemos nesta bolha protegida com tudo o que precisamos, neste país pequeno e de tempo ameno e queixamo-nos o tempo todo do estado das coisas, de como é curto o nosso bem-estar, de como precisávamos de ser, sei lá, como os noruegueses ou mesmo como os luxemburgueses, civilizadíssimos e ricos que são, de PIBs descomunais e com governos impecáveis e sem corrupção que devolvem ao povo bem comportado, traduzido em benesses variadas, o suor do seu trabalho. E nós, aqui, tão coitadinhos e miseráveis que somos, o fado cinzelado na alma que não nos deixa escapar ao nosso destino sombrio que cantamos, gemendo e chorando, a cada dia que passa.

Carochas. Bando de carochas, nascemos para quê? Fazemos o quê de importante e digno, que pegada deixamos no mundo? Leio listas de nomes de pessoas que entregaram o coração aos outros e que são devidamente pedestalizadas pelos bandos de carochas alegres que somos. Cá vamos, acumulando – não sei se as carochas acumulam, mas pela via das dúvidas dou-lhes essa qualidade tão humana. Acumulamos coisas, discussões, relacionamentos, zangas, especiarias nos armários da cozinha, com medo que nos falte alguma coisa no futuro que pode acabar no segundo seguinte debaixo de uma rocha da praia. Carochas que somos, acumulando férias ao sol, trabalho bem despachado, mal-dicências pequenas e sem importância, roupas, sapatos, mobílias, bodegas.

“Pára lá com isso!”, grita-me o Grilo. “E põe-te mas é a mexer!”

“Muito bem, Grilo”, respondo-lhe eu, disposta por fim a tomar alguma acção que se veja e que lhe aplaque a critica constante.

De facto, agora que arrumei mais esta pequena caixa em mais esta prateleira, verifico que tudo isto é inconsequente e é um discurso sem fim. Cansativo, sem solução à vista. O propósito da vida, tão bem defendido por miríades de filósofos, teólogos e gurus das mais variadas espécies, cada um com o seu, deixa-me lá escolher o meu propósito do dia, carocha que sou, pequena que sou: o desfecho simples da minha pequena história do dia.

Preciso desta argamassa diária de segurança e destino, carocha que sou a pisar as dunas deste deserto infindável em que vivo contente. Cansam-me as coisas, tanto quanto me dão consolo pela beleza que as define e pelo lugar harmonioso a que pertencem. Mas vejo-me dentro desta tenda ampla que me protege do sol implacável do meio-dia deste deserto infindável em que vivo contente. Ao sabor das ondas de areia que se formam sopradas pelo vento sul, descanso o Grilo e digo-lhe que bem sei que o trabalho industrioso, o banho diário e uma alma grata lavam o pecado e são ferramentas seguras na construção interior dos caminhos do deserto infindável em que vivo contente. Agarro as referências palpáveis e deito um olhar fugidio ao mapa das estrelas imutáveis e que não me deixam enganar no caminho das dunas. De uma forma ou de outra, sei que chegarei ao destino e que, quando lá chegar, muito mais mar e areia se estenderão à minha frente.

Amigo Grilo que não dormes, dá-me uma pequena paz e deixa-me ser imperfeita nas horas do dia e também nas da noite em que eternizo a minha preguiça de carocha errante. Vou agora contentar-te com o cumprimento das tarefas que estruturam a vida, mas deixa-me depois voltar a vaguear pelo deserto belo e extenso da minha alma cigana. Vaguear sem culpas na consciência por gostar tanto do vento morno que me despenteia os sentidos, por gostar tanto de sentir a areia a resvalar-me na sola dos meus pés descalços.


23 de Agosto 2009

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