1 de nov. de 2009

A Santa


São circulares os passos da santa à volta do pendor. Anda, a santa, à volta de si mesma, aparentando devoção à imagem de madeira pintada que os crentes levam aos ombros. Dá voltas sobre si mesma e pergunta-se porque está ali, carregada aos ombros doridos de quatro homens robustos mas já entrados na idade, que assim a veneram, e não sabe porquê. Pergunta a santa aos céus o porquê de tanta agitação e flores e ladainhas murmuradas baixinho sob o ritmo cadenciado dos passos da procissão.

A santa que caiu do céu onde nem sabia que estava e agora vê-se ali, pintada a verde e azul e de manto branco pintalgado de estrelas, olhar condoído sobre os males do mundo, e os ombros dos crentes a carregarem-lhe o peso da sua alma vencida que abandonara este mundo às desgraças do mal que o corroía. Voara a santa céus acima até depois das núvens fofas e brancas que espreitavam sobre os milheirais, desistindo de pisar mais a terra molhada onde andara tantos anos a gastar os pés a dar consolo aos aflitos que lhe retribuíram agradecimentos, sorrisos e mais aflição.

Perplexa, a santa, aflita e invisível, abana os homens que a carregam e grita-lhes aos ouvidos para que a oiçam, pergunta-lhes o que fazem que a carregam aos ombros congelada em madeira pintada e olhar fixo e condoído sobre os males do mundo. Não lhe respondem, os crentes que a carregam murmurando ladainhas de dor e esperança, honrando-lhe a memória dos dias idos em que já era santa e não sabia que o era.

A procissão passa-lhe diante dos olhos e vira a curva da aldeia pisando um manto de flores e deixando atrás de si um rasto de incenso e paz, e fica a santa perplexa para trás, fixando o olhar nas costas dos crentes que a seguem lá à frente e não a ouvem agora gritar.

Fica-se a santa de olhos pregados no céu em interrogação, sem saber a que mundo é que pertence e quando a procissão desaparece voa de novo para o céu onde não sabia que estava e dissolve-se nas núvens brancas e fofas que pairam sobre os milheirais.

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