5 de nov. de 2009

A caixa das almas


Cá estava, aquele cansaço pegajoso de novo a escorrer entre as células, bloqueador de mitocôndrias, Jack-o-Estripador que esventrava os núcleos de toda a energia e a sugava para o lugar incerto da sua loucura e fantasia maldosa. Agora, era agora que via aquela sombra da esquina da mesa recortada no chão de mosaico velho da cozinha, o claro-escuro da alma tão simples ali debaixo da mesa da cozinha como se dela fizesse parte, ali, tão simples.

Que importava a busca inquieta pelos confessionários onde procurava remissão e luz paga a peso de orações repetidas e esmolas na caixa das almas – nunca entendera a esmola às almas, onde iam as almas buscar as moedas e o que faziam com elas, as almas, brancas, barbapapas brancos pregados num quadro de feltro verde por pioneses e penduradas ao lado de Deus de barbas grisalhas curtas e barrete preto de astracã na cabeça. As almas que precisavam de esmola, e ao lado ele rezava de enfiada as avé-marias da rendenção incerta para o certo pecado da véspera e das décadas de vida anterior. Lá estava, o mal em todo o seu esplendor e plenitude, se de esplendor e plenitude se pode apelidar o mal, por grandioso que seja quando, por exemplo, se incendeiam casas inteiras com pessoas lá dentro, ou mesmo cidades, ou se fazem de propósito leis aviltantes que lançam ao degredo e morte milhões de inocentes mal-queridos.

Mas aquele pequeno mal recortado na sombra projectada no chão pela esquina da mesa da cozinha era-lhe familiar, de tão repetido, sempre o mesmo mal de si mesmo, a pequena-grande imperfeição que não o deixava crescer e o remetia à caixa das almas trancada, a sua própria alma ainda dentro do seu corpo vivo mas já trancada na caixa das esmolas para as almas da igreja do bairro. Sentava-se no banco e rezava e olhava para a caixa das almas e sentia-se lá dentro trancado sem luz nem ar, em forma de lágrima, barbapapa branco, dobrado, enrolado dentro da caixa à espera que lhe caíssem em cima os cobres da culpa e da devoção dos devotos. Mais uma oração, o coração inundado de esperança e paz pelas palavras sagradas que, de tanto repetidas, puxavam milagres do coração dos santos, obrigados, pelas súplicas, a socorrer os aflitos. Dentro da caixa as almas revolviam-se, ensonadas, de um lado para o outro, adormecidas na paz das orações pelo sussurar das palavras ali tão perto, acordadas aqui e ali por uma ou outra moeda atirada para dentro da ranhura da caixa onde repousavam.


Acordou da fantasia e estava deitado ao lado do piano velho da cozinha. Aquela casa enorme debruçada sobre o Tejo e de onde se via Lisboa a 380 graus a todo o redor tinha um piano por divisão, até na dispensa havia um – mas estamos a falar de uma dispensa enorme e de uma pequena pianola de rolos meio partida que não encontrara melhor sítio lá em casa para descansar que não fosse por baixo da prateleira dos enlatados.

A sombra ainda se recortava no chão de mosaico velho, o claro-escuro do bem e do mal ali tão perto, estava tão perto de entender as fronteiras entre um e outro e onde começara a resvalar de um lado para o outro. Mas acordou. A caixa das almas começou a tomar outra forma e a fugir para a parede da Igreja ali tão perto, já não a via e as almas concerteza não estariam lá dentro à espera de moedas e orações.

Despertou do torpor de Verão e espreguiçou o cansaço pegajoso para fora das células, ganhando redobrada energia ao retesar os músculos, levantando-se do chão de mosaico velho onde adormecera ao sol que entrava a jorros pela janela enorme.

Luz, tanta luz sob o céu azul da cidade, os telhados vermelhos e as casas velhas e desalinhadas, um encanto de cidade com tanta tragédia para contar e tantas ruas por varrer.

Olhou de novo e a sombra contrastante do bem e do mal da esquina da mesa da cozinha desaparecera por completo – o sol baixava e rodava, se calhar rodopiava lá fora nalgum milagre fora do comum que ele não iria ver porque naquele momento tinha preguiça de chegar à janela enorme e olhar para o céu.

Lançou mão à caixa do pão de onde retirou um pão alvo e redondo que abriu com uma faca de serrilha partida. Um pouco de manteiga e um naco grosso de Serra da Estrela, levantou-se, abriu o frigorífico e tirou dois tomates-cereja que esborrachou dentro do pão. Abriu a boca e, deliciado, ferrou uma dentada de tamanho médio – pois o pão era pequeno e não o queria comer todo de uma só dentada, queria prolongar o prazer daquele lanche na cozinha velha inundada de sol. Tão bom. Levantou-se de novo, abriu o frigorífico e tirou um pacote de leite, deitando um pouco no copo sujo que tinha usado antes de adormecer. Tão bom. Desvanecia-se assim de vez a inquietação de morte e dúvida que o levara à confissão sonhada naquela igreja fresca onde as almas dormitavam dentro da caixa das esmolas. Sonha-se com cada coisa! Nova dentada no pão farinhento e fofo, aquele queijo divinal e gordo, o tomate a esguichar nódoas na camisa branca. Foi-se o sonho de vez à medida que o sol se ia pondo atrás do rio azul e largo e, com ele, os 15 segundos e dez centímetros de separação entre a sua mão e a verdade das coisas, a compreensão do âmago das questões, de todas as questões. Seria aquilo uma espécie de nirvana, aquela fronteira em que os olhos da alma repousam na linha do horizonte e, por um micro-segundo, conseguem descortinar a verdade em toda a sua plenitude mas o cérebro não acompanha e não fixa e não se lembra mais, o cérebro mortal e preguiçoso, que podia fazer muito melhor de tanta circunvalação cinzenta em vez de pastar tardes inteiras em frente à televisão ou a recolectar memórias irrelevantes de um passado irrelevante de rancores irrelevantes para a construção dos dias. Enfim.

Levantou-se, limpou as migalhas da mesa, guardou o queijo no frigorífico, sem se esquecer de pôr o copo sujo na máquina da louça e saiu da cozinha velha, agora já mergulhada na sombra do crepúsculo. Olhou para trás por um momento, para se lembrar que esquina recortada a claro-escuro no chão de mosaico velho era aquela que tanto o tinha impressionado, mas já não se conseguiu lembrar de nada.

Voltou então costas e foi-se embora.

1 de Setembro 2009

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