5 de nov. de 2009

No vale


Entre uma montanha e a outra havia este vale, que não tinha grande extensão. Por via da sorte, ou mesmo do destino, aquele vale nem era muito largo nem muito comprido, e o caminho até se fazia bem, entre uma montanha e a outra. Olhando-se de longe, nada parecia especialmente difícil naquele percurso entre a montanha parcialmente queimada pelos fogos de Verão e ressequida pela falta de água, e a outra elevação que se avistava ao longe, ao que parecia densamente florestada e até salpicada de cores vivas – raro é as montanhas aparecerem assim coloridas ao longe, são mais os prados nos vales, nas planícies e em alguns planaltos que se cobrem de flores na Primavera, ficando pintalgados muitas vezes até Verão adentro.

Iam a meio caminho entre as duas montanhas, mas um ia mais atrás que o outro. Um tomara a identidade de Perséfone ao se lançar ao caminho, tendo descido a montanha seca e encontrando-se, quando abriu os olhos uma manhã, a caminhar o vale em passos incertos. Olhava para trás, para a montanha seca, onde via nitidamente as entradas disfarçadas para os reinos de Hades de onde saíra pelo seu próprio pé e sem precisar de Hermes para nada. Em frente, lá estava, aquela montanha estranha, florida, coberta de madressilvas roxas, jasmins brancos e dálias cor-de-sangue, tão apetecível e cheia de recantos frescos e caminhos felizes para se ir saltitar de pés descalços logo pela manhã. Imaginava isso mesmo, sair de casa e saltitar nos caminhos felizes sem sapatos nem nada que se parecesse a maçar-lhe os pés que queria mergulhados no orvalho fresco da primeira luz do dia.

O outro, mais atrás, libertara-se agora da montanha seca mas a ela voltara uma última vez para cumprir o consolo dos últimos dias. Cumprir o consolo era um estranho aforisma mas fora isso mesmo que o levara a ficar mais um pouco na montanha seca, depois de já se ter feito à estrada do vale com Perséfone por companhia. Adónis, tomara-lhe a identidade quando saíra da montanha seca e se apaixonara por Perséfone com quem se lançara à estrada do vale. Não pertencia àquela montanha seca, mas tinha adormecido um dia à sombra de uma enorme palmeira ressequida, porque até as palmeiras acabam por secar se não cai do céu, ou de mão caridosa, a pouca água que precisam para se alimentar.

Um dia tinham adormecido também os dois à beira do rio que corria ao longo do vale curto, exaustos de amor e esperança e tinham vivido por breves instantes na montanha florida tão ali à mão, que os esperava logo ali no fim da estrada do vale. Morada dos deuses, tinha a entrada barrada a Hades que se contentava em ficar na sua montanha seca a gizar esquemas de angústia e pequenez para cima das pessoas que lá iam parar e que, sem saberem, eram seduzidas pelos seus esbirros disformes para dentro das entranhas da montanha, onde tantos ficavam presos anos a fio, na modorra dos dias, no calor enganadoramente ameno das lareiras de Inverno. Era mais um purgatoriozinho, aquele inferno de Hades, que reservava as caldeiras de calor insuportável para os verdadeiramente maus de coração – e havia tão poucos maus de coração que Hades tivera que expandir as fronteiras daquele infernozinho mais ou menos ameno para poder nele fazer caber resmas e resmas de viajantes acomodados aos nós do tempo e ao sabor sempre igual da comida de todos os dias. Não sabiam eles que as portas do reino de Hades estavam sempre abertas, Perséfone sabia-o e estava sempre a entrar e a sair e desta vez saíra determinada a não voltar mais.

Ia mais à frente, Perséfone, no caminho do vale e ia agora sozinha. As horas passavam e Perséfone continuava a dar os seus passos lentos em direcção à montanha florida, mas ia sozinha. Pensara sempre em fazer aquele caminho e agora lá o estava a fazer. Abrandava agora o passo para esperar por Adónis, mergulhado uma última vez no seu último calendário de obrigações e dívida à montanha seca, a cumprir o consolo dos últimos dias. Nos céus nem uma ave que lhe servisse de companhia, e ia Perséfone a passos lentos e já disposta a mudar de identidade mal tivesse percorrido meio caminho daquele vale pequeno. Não mais concubina da morte, companheira dos infernos, iria agora reinar naquele pequeno reino de paz e harmonia cujas ruas eram ladeadas por pérgolas de buganvílias e macieiras sempre em flor. Estendeu a mão e sentiu Adónis, o seu espírito vivo e brilhante, a roçar-lhe a alma. E então prosseguiu viagem, sabendo que os dias do vale pequeno iriam chegar ao fim, por muito longos que lhe parecessem naquela travessia aparentemente tão curta mas que sentia agora tão lenta e solitária.

Eram só mais uns kilómetros e estariam lá. De mão dada entraram na montanha florida, estranha montanha coberta de flores que não feneciam nunca, onde a neve não caia e o frio mal se fazia sentir. Armados de doçura e paz, Perséfone e Adónis contruiram lá uma casa de terraço branco e vista desafogada sobre a vida, e nunca mais voltaram à montanha seca, ali tão perto, à distância de um vale curto e onde corria um rio profundo de águas mansas e transparentes. No fim da vida não morreram, mas também não viveram para sempre: deixaram de existir ao mesmo tempo e nunca mais se ouviu falar deles. É assim que acabam os deuses e os contos extraordinários são escritos, promessas de futuro tornado presente nos segundos que correm, rápidos, inexoráveis, no caudal do rio manso e de águas transparentes do vale curto das nossas escolhas.


2 de Setembro 2009

Nenhum comentário: