Transporto-me à história e como de branca pouco tenho e de neve ainda menos, presumo que a bruxa má que me persegue não me inveja pela minha beleza albina de lábios polposos, como a da princesa da história, mas antes escava-me a alma à procura do mal em semente que lá está e quer fazer seu. Empurra-me, a bruxa, contra os galhos das árvores alinhadas do pomar e tenta que eu apanhe as maçãs por minha iniciativa, e as coma, compulsivamente, umas a seguir às outras, e os pobres estendem as mãos famintas e eu engulo as maçãs inteiras para não lhes deixar nada, nem o sumo que me escorre pelo queixo abaixo, e até o vómito por excesso de ingestão que se segue é escondido num buraco fundo.
Tem dias, este mal que todos temos – que soberba dizer isto, um alívio pela partilha do mal pelos outros, atribuindo a cada um a sua quota parte no mal que nos rodeia. Olho, e vejo-me inocente, coitada, bem intencionada, coitada, generosa e ingénua, coitada, coitada de mim tão boazinha que sou e o mal à minha volta despeja-se em cima de mim mal olho para o écran de uma televisão à hora do telejornal. Os outros, os maus, lá estão a perpetuar o mal sobre o mundo e eu, coitada tão boazinha, não posso fazer nada.
Vem então a bruxa má que me escava o mal que tenho dentro. De sombras e luz somos feitos, não haja ilusões de tanta sombra que temos acumuladas no sangue e claro que o sabemos e as confessamos ao padre, à melhor amiga ou às paredes surdas e frias que nos rodeiam e lá prosseguimos o dia seguinte na certeza que neste dia seremos um pouco melhores e menos inertes e menos egoístas que no dia anterior.
Panaceias bem embrulhadas em papel de lustre e rematadas com um belo laço que engolimos para abafar a dor dos dias inconsequentes que apenas levam a mais outro, nos dias em que as cortinas da chuva pequena nos toldam a visão para as avenidas largas e brilhantes do nosso destino. Remexe a bruxa má nas feridas do mal e envenena-nos de fruta e ódio para que adormeçamos sem lutar um dia mais.
Não deixo que me remexa a bruxa, vou lá escavar eu mesma e extirpar às mãos cheias a podridão acumulada da minha própria negligência. Para com o mundo, para comigo mesma, não me vá a morte apanhar desprevenida num dia de sol e esperança e depois tenho pena de não ter ido um pouco mais além que a predestinação anunciada de uma vida média e comezinha, resignada de ser, de ter e de haver.
Não morro, pois, não me apetece, deixa lá ver se é desta que acordo e me deito a sorrir, um dia e outro e mais outro a seguir, mão firme fechada sobre o mal, definhando-o à força de pulso.
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