10 de out. de 2009

Estou à venda


Estou à venda. Preciso de trocar de alma e corpo e olho agora para um braço e dispenso-o por bom preço. Vendo-me por inteiro, ou por partes. O todo, certamente, será mais em conta, faço um preço especial para quem me levar da cabeça aos pés. Estou à espera, eternamente à espera, depois de conquistas, derrotas e batalhas longas no tempo, e não me vejo. Pelo que me vendo, agora, na esperança de conseguir seguir a cartilha dos dias do comprador e chegar, quem sabe, a uma meta qualquer. Chega-se à meta e depois? Os três primeiros lugares têm direito a medalhas e subida ao pódium, os restantes merecem menções honrosas pelo esforço mas não ficam para a história. Quero lá saber. Uma meta qualquer, pode ser vender carne ao quilo e acumular dinheiro no banco manchado de sangue dos vitelos e borregos, pernis de porco e bifes de peru. Se me comprarem por partes, talvez seja um talhante que me compre para me revender por um preço melhor. Talvez a golpes de faca afiada se me extingam da alma de vez os meus anseios por qualquer coisa indefinida mas que vi um dia nos romances de capa e espada, nas aventuras sem fim, viagens espaciais à velocidade da luz, super homens de poder infinito sobre o mal e que materializam gelados de caramelo na palma da mão quando está calor e preciso de um doce fresco.

Estou à venda, comprem-me e digam-me quem sou.

Toca-me à porta


Foto de Daniel Clark Orey 


Toca-me à porta e diz-me: "amo-te", lá de baixo do intercomunicador. Escreve-me "amo-te", meu amor, escreve-me em palavras de tinta invisível com aquele teu jeito inocente que só tu consegues ter.

Lança-me um papagaio no céu, contrata um daqueles aviões pirosos da praia com o meu nome para que voe sobre o mundo e todos saibam do nosso amor.

Toca-me à porta e diz-me "amo-te", uma só vez, lá de baixo, mas não subas meu amor. Vai-te e foge, mas toca-me à porta primeiro.






Agosto 2009

Tapete Real


Era aquele campo pintalgado de todas as flores que existiam no mundo que se estendia à sua frente como um tapete real.



Desfolhava o ramo de rosas e desfolhava o caderno de encargos da vida nova em que se metera, tudo ao mesmo tempo. Uma pétala por encargo, e as rosas pareciam multiplicar-se a cada folha do caderno que preenchia em letra pequena e aprumada. Ter paciência. Praticar a bondade. Nunca perder as estribeiras. Esperar com um sorriso em cada esquina das horas. Não escrever palavras duras e sarcásticas, não ironizar e nunca, mas nunca deitar-se depois da meia-noite. Era mais ou menos isso e os lírios, contentes, esbranquiçavam as pétalas ainda mais e as dálias espreguiçavam-se à sombra fresca da noite para não murcharem e ganhavam pés de manhã para fugir ao sol estridente.

9 de out. de 2009

O que seria do mundo


O que seria do mundo sem as flores que o vestem. Desolado, despido de cor, o mundo árido como as almas que sofrem de frio eterno como se mergulhassem no Inverno perene da Rainha do Gelo. Sem flores, o mundo, ai o mundo sem cores, nem um líro à vista, as árvores sem fruto só dariam galhos secos e os jardins dos ingleses não passariam de relvados de futebol em miniatura.

O Gnomo


Tinha passado a noite a arrastar as fronteiras do tempo para além dos limites do possível. Olhou para o relógio: eram quase seis da manhã, e pensou então que era boa hora para tomar o pequeno almoço: meio pacote de batatas fritas, uma pêra, um folhado de espinafres há 4 dias no frigorífico, tudo isto bem regado com uma caneca de café com leite para ajudar a dormir. Pois tinha de se deitar, por ter de se levantar daí por pouco. Dormiria umas horas, poucas que fossem, para agarrar o mundo às 9h00 da manhã todo de seguida, tarefas encadeadas umas nas outras, tarefas das mais diversas naturezas.

Olhou para o espelho, tinha os dentes verdes. Espinafres, concerteza. Não eram bem os dentes que estavam verdes, era mais uns farripos de espinafres entre os dentes e pensou, por momentos, avistar também uns restos de batatas fritas nos molares de baixo. Que miséria. Devia estar a dormir há horas e no entanto via-se agora ao espelho e não conseguia saber quem era. Tinha o nome bem presente, e os do resto da família, sabia a morada de cor, como de cor conhecia os ingredientes dos cremes que vendia e de cor sabia o valor das facturas a pagar no final de cada semana. Mas não sabia quem era. Quanto mais olhava para os dentes verdes, mais a sua imagem no espelho se desfazia e se tornava numa névoa indistinta que, por sua vez, tomava corpo numa espécie de gnomo da floresta, já as orelhas se alongavam, conseguia agora distinguir a forma pontiaguda que tinham tomado, o cabelo crescera de repente e na cabeça surgira um barrete daqueles dos contos de fadas. Com guizo e tudo.

Aborreceu-se daquilo tudo e voltou-se para sair da casa de banho mas o guizo soou. Parou. Não podia ser, era uma fantasia das seis da manhã depois de uma noite a arrastar fronteiras de tempo. Deu mais dois passos, o guizo lá estava, tlim, tlim, dois passos, tlim, tlim.

Não se quis ver ao espelho de novo, fechou os olhos, lavou os dentes na esperança de retirar o verdete dos espinafres e saiu a correr para a cama onde se deitou e se escondeu entre os lençóis. Nada a fazer: o guizo tocou furiosamente enquanto corria para o quarto, sentiu o barrete de gnomo bem enfiado na cabeça e, quando por fim, estava mesmo quase a adormecer, lançou as mãos às orelhas e apercebeu-se que tinham mesmo crescido e estavam duras, pontiagudas e, pior que tudo, peludas também. Estarrecida de espanto e maravilha pelo tédio dos dias contados se ter agora quebrado, adormeceu por fim feliz.

8 de out. de 2009

De Carmelita a Party Girl. A vida muda. Desejo de contemplação: de onde vem a paz?



Era aquela sede de carne que lhe acirrava o desejo. De terço na mão, unhas ilegalmente compridas que arranhava a pele até fazer sangue até o desejo espirrar e morrer de dor. Prostrada no chão chorava pelo Senhor e pela pele entrapada de algodão grosseiro que lhe picava o corpo. De terço na mão, cuspia as avé-marias até ficar sem voz, até lhes esvaziar o sentido. Era aquela cela tão apertada como os campos abertos verdejantes que pisava todos os dias e as praias que se estendiam a perder de vista e o mundo cheio de tudo o que havia para ter. Que importava. Era tudo a mesma cela e trancava-se, agora, aparafusava o ferrolho por dentro, e outro ainda e fechava os trincos em cima e em baixo e fechava as portadas das janelas e colocava um pano preto por cima das frinchas que ousavam deixar passar a luz exígua que teimava em tentar entrar. Deitou-se, depois, e dormiu.


Notar bem: A Maga Patalogika mandou-me este texto lá da Patolândia. Veio na coruja do Harry Potter, a quem eu agora estou a dar amendoins e a cantar canções de embalar para ver se ela dorme e me deixa dormir a mim. Deixou-me este álbum de fotos a propósito do texto: Freira de Carreira

7 de out. de 2009

Flores


Com tanta coisa para fazer e aqui estou eu, vidrada no écran a tentar construir este blogue. Só que não me apetece transferir para aqui de corrida os textos todos que tenho escrito ao longo dos últimos meses. Gosto de flores, tenho mesmo a mania das flores. Encontrei este livro que comprei há 20 anos em Washington, D.C. sobre jardinagem. Ao contrário do que se possa imaginar, não há nada de entediante nos textos de um livro que simplesmente fala de flores, de jardins e do prazer e da alegria de tomar conta deles. Se tiver tempo, vou seleccionar uns textos de que gostei particularmente, traduzi-los e publicá-los aqui, juntamente com as ilustrações vitorianas lindíssimas. Por agora, meia dúzia de flores descaradamente roubadas à net. É só clicar neste link:  Flores

Nada


Então era isso. Claro. O óbvio já esperado se bem que não desejado. Era assim, sempre fora, sempre seria. Quase tudo o faria prever, à excepção da dimensão do extraordinário em que acreditara momentaneamente. Para quê. Estava encaixada na vida comum e nada, nada, nada a poderia desagrilhoar da vida de todos os dias que não fosse o seu amor pela liberdade, encarcerada entre quatro paredes, atada de faixas de sangue e memórias e de vida que não a sua, atada, só o pensamento era seu, mais nada, a metáfora do homem livre que é sempre livre porque pensa. Penso, logo sou. Afinal era isso, era. Simplesmente, era. Infelizmente, apenas para benefício próprio, ou nem isso.
Que mais esperar que não o que sempre esperara: um nada vazio despojado absoluto de nada e de desejo que não existia nem existiria nem existira. Maya, fantasia – havia aquela montanha a escalar, e teria de ser escalada. Se calhar agora, por fim. Até ao nada que traz a paz e a satisfação de nada ser. Nada.

Março de 2009

Eu já tenho um blogue: é este


É consolador saber que estas palavras que escrevo neste momento não são lidas por ninguém. Depois da experiência facebook e da reacção imediata por parte de terceiros a todo e qualquer ar da minha graça que fui publicando ao longo do último ano, decidi por fim aceitar a sugestão dos amigos e transferir para um blogue os meus textos. "Cria um blogue, o facebook não é o sítio ideal para publicares as tuas coisas" e frases que tais, com as quais não concordo necessariamente, fizeram-me, no entanto, recordar que eu já tinha aberto este blogue há um ano ou dois, quando me enfureci com a ASAE, a EMEL e o estado das coisas em geral.

Assim, e como não me apetece andar por aí a criar blogues como cogumelos, vou usar este mesmo para compilar os meus escritos. São escritos como os das janelas das casas para alugar: temporários, fugazes, uns dias são outros nem por isso. E, para já, limito-me a fazer copy paste do face para aqui. Depois, se me apetecer e à medida que isso for eventualmente acontecendo, passo a escrevê-los aqui primeiro. Talvez. Just maybe. Aturem-me, se quiserem, e se não quiserem, pois ignorem-me. Sempre é mais pacífico escrever aqui que no face com tanta gente a dizer de sua justiça e de forma imediata. Têm sido, regra geral, generosos e até demais com os comentários à minha veborreia. Quem sabe, aqui, serei apedrejada e mandada de volta para a escola primária - o que seria refrescante e tema para uns belíssimos debates. Seja como for, aqui ficam os textos, por ordem cronológica ao contrário: começo por lançar os últimos que escrevi e vou recuar até aos primeiros. Porque me apetece. E já agora e nada a propósito: Mata-Hari Photo Album aqui