5 de nov. de 2009

Mais um degrau


Tinha bom fundo. Enfim, um fundo que as décadas tinham empurrado cada vez mais para o recôndito escondido da consciência, em boa verdade, mas bom fundo na mesma. Caçador de profissão, gostava de contar troféus, poli-los com um pano macio, dar-lhes o brilho, rememorizá-los, enumerá-los, recontá-los na noite dos dias quando o desencanto do presente se fazia sentir de forma mais viva. Degustador de profissão, acordava contente com o gosto a doce da véspera, os aromas da conquista real ou imaginária ainda ferrados no palato, agora ligeiramente amargo. Amigo do mundo de profissão, fazia gáudio em abraçá-lo com rasgos largos e ruidosos de emoções genuínas à flor da pele. “Aqui estou eu”, fazia lembrar permanentemente, cheio de histórias para contar e uma vida coberta de peripécias e aventuras rápidas, a vida devorada a cada passo há muitos anos atrás e agora apenas um acumular de horas até ao próximo evento digno de nota e do lápis da memória, cada vez mais espaçado, pirilampos de lanternas fugazes nas caudas e que mais não faziam que alumiar parte de alguma noite escura perdida entre mil noites de breu e sem céu.

Perdido naquela escadaria tão larga como o mundo e de que não via o fim, marchava a passos seguros pelos degraus rugosos, evitando as esquinas mais brunidas que o levariam ao tombo certo de volta ao limiar do caminho. Nada disso queria, procurando a adolescência perdida nos olhos claros das mulheres que lhe sorriam e na seda dos cabelos brancos tingidos de louro, reminiscências de uma idade de ouro em que vivia errante de nostalgia. A música, os ritmos de outrora, as mulheres de outrora, a velocidade do vento na cara a rasgar-lhe a alma livre, protegido apenas por aquele famoso blusão que lhe ungira a fama e lhe abafava o corpo em dias frios.

E agora, a vida. Aquela pirâmide de êxitos acumulados, seguros, palpáveis, e a felicidade, ali tão próxima, bastava lançar-lhe a mão e tocar o pico da pirâmide, subir mais uns degraus daquela escadaria larga como o mundo de que queria adivinhar o fim. O pico para onde se queria lançar, corredor de fundo mas a direito e agora tinha de subir e olhar apenas aquele pico e ignorar os troféus acumulados e o passado e as mulheres de outrora com os seus sorrisos quentes e as suas palavras de circunstância que lhe queriam devorar o corpo e apanhar-lhe boleia para a próxima praia de areias douradas e águas frias.

Mais uma etapa, mais um degrau. Era largar aquela caixa de paredes altas forrada a notas e ruído e comprar um espelho, mesmo de cobre, polido como os troféus que polira anos a fio. Um espelho de onde a volta do seu reflexo lhe provocasse mais que um sorriso aprovador e onde visse aqueles pequenos caminhos raramente assinalados nos mapas das estradas, espelho-guia da viagem até ao pico nos passos doridos daquela escadaria de que, agora, já talvez conseguisse ver o fim.

17 de Agosto 2009

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