5 de nov. de 2009

O buraco


É a vida um rendilhado de acontecimentos e pessoas interligadas com mais ou menos sentido e nós à procura do sentido nos pontos de encontro entre os diversos acontecimentos e pessoas. Há aqueles que vêem um sentido de destino em tudo, há os outros para quem tudo são meras coincidências, há ainda quem não tenha a certeza e dê o devido desconto, numa abordagem cautelosa às expectativas criadas que tantas vezes se goram sem se saber como nem porquê. São as dinâmicas que se criam e se destroem naturalmente, num acto divino de Shiva, o destruidor da morte e criador de vida porque também destrói vida e cria morte, repondo o equilíbrio onde ele é mais necessário. Às vezes não entendemos logo porque é que o chão nos é retirado debaixo dos pés, vamos nós placidamente a calcorrear os passeios da vida e lá caímos nuns buracos que ou não vemos ou não queremos ver, e depois lamentamo-nos da sorte e do destino e da injustiça divina e da dos homens. E o chão lá se vai, estava lá num momento e no seguinte desaparece, engolindo-nos com ele e forçando-nos a fazer a viagem de volta à superfície tantas vezes tendo de escalar paredes de limos escorregadios, laçar cordas várias vezes até que encontremos um ponto de apoio que nos permita fixá-las e subir penosamente de regresso à calçada. Um rendilhado de coisas, confusas, barulho, coisas, gente, amor, guerra e paz, enfim a vida.

E lá estamos nós a calcorrear o passeio de novo depois de cair em mais um buraco – "eu não caio em buracos porque os vejo sempre e sou tão organizado e prudente que planeio a minha vida toda ao mais ínfimo detalhe para que nada de mal de aconteça, a conta bancária a engordar com o acumular dos tostões do suor ou da sorte, mais uma casa de férias e as minhas viagens radicais para experimentar a vida em toda a sua plenitude lá do cimo das ravinas de onde me atiro de bungee e os mergulhos nas águas azuis turquesa do Pacífico onde vou conhecer peixes e algas de cores brilhantes que em Lisboa só consigo ver no écran do plasma acabadinho de comprar." E volta ele de mais aquelas férias e daquela satisfação de vida e contentamento e realização de ver tudo no lugar certo e as peças do puzzle todas encaixadas mas descendo ali ao Chiado coloca mal o pé, depois do bungee jumping em que arriscara a vida e um ataque cardíaco mas conseguira viver intensamente durante alguns minutos, pois coloca mal o pé e o torce e o parte e o chão ao lado da valeta aberta das obras eternas que se arrastaram do Inverno ao Verão lá se escancara e o engole, de repente, apenas um pé torcido que incha e não o deixa trabalhar uns dias e durante esses dias o peso da existência abate-se sobre o seu coração e mente e alma e espírito – vamos lá nós destrinçar o que é o quê e a natureza da consciência e onde ela realmente se aloja. E pronto, o buraco que se abre, lentamente, inexoravelmente, alguém que morre, alguém que parte e bate a porta com violência para nunca mais voltar, alguém que nos olha o movimento dos lábios mas não vê nem ouve o que temos para dizer, a vida que deixou de fazer sentido, o desalento, o cansaço, a mulher que lê romances de cordel aos 60 anos ao lado do marido gordo e calado que apanha sol na espreguiçadeira da piscina, duas horas de silêncio em que nada têm a dizer um ao outro que não seja “passa-me o bronzeador e onde é que vamos almoçar hoje”.

Evito esses buracos, caio noutros inesperados e negros, levanto-me, volto a cair, levanto-me, volto a cair mas do chão não passo, do chão que se me desaparece debaixo dos pés mas não me suga para o vácuo sem piso porque a terra é redonda e do outro lado estão os chineses com montes de chão para pisar, e a terra é também cheia de rochas e magma ardente que me queima o passado e me dá novo chão de onde salto um salto heróico e kilométrico para a calçada nova acabada de calcetar, branca, brilhante, lavada, onde não vejo mais buracos, lentes cor-de-rosa que uso de propósito para sorrir em vez de chorar.

É a vida rendilhada, cheia de pessoas e barulho e cores e acontecimentos ilógicos e terríveis e maravilhosos e banais e aborrecidos e bonitos e surpreendentes, basta para tal o tal sorriso e a disposição e vontade de se ir mais além e, com sorte, ver o buraco no chão antes que ele nos sugue ainda uma vez mais.

11 de Agosto 2009

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