18 de nov. de 2009

Tarde de chuva


Como é que uma tarde fria se reconfortava no jogo de luzes com que se rodeava – pensava, absorto na resolução de dois ou três problemas imediatos, daqueles que apenas tingem as horas que passam e não deixam rasto. Aquele vinho que não encontrava em lado nenhum e que prometera a Ana de presente nos anos dela, que se avizinhavam a passos rápidos, e do vinho não havia rasto, esgotada que estava, ao que parecia, a reserva nas prateleiras dos supermercados e mesmo das melhores lojas. Não se deve prometer nada, estava avisado disso mesmo desde sempre, não prometas, diz apenas que vais tentar e depois logo se vê, promessas para quê, e depois sentes-te na obrigação de as cumprir e cai-te no estômago a frustação de te sentires menor por não o conseguires.

Olhou pela janela, que o chamou pelas bátegas de granizo fino que lhe embatiam agora, o céu chorava pedras e ele tão confortável no seu jogo de luzes cuidadosamente distribuído pela sala, aquele sentimento caseiro de se sentir quente e recortado à medida do seu poiso, com tudo no lugar certo, as luzes incluídas. Luzes quentes e bem distribuídas pela sala, abatjours amarelados e uma ocasional luz mais branca no chão para não criar sombras, nada de luzes no tecto. O Inverno lá fora gritava e tentava entrar pela janela e chamava-o atirando-lhe mãos cheias de granizo aos vidros, em vão. O contraste de estar dentro e quente, aquela pequena felicidade do conforto de uma chávena de chá de gengibre quente com mel e limão para lhe atacar a tosse e a possível gripe que se avizinhava, mas até isso era reconfortante e familiar.

Tocou o telefone e atendeu. “Estás distante”, susurrou-lhe a voz chorosa de Ana do outro lado da linha, entrecortada por soluços baixinhos. Não respondeu logo, ficou a ouvir os soluços baixinhos que se ritmavam por qualquer razão com a cadência do granizo, agora mais leve, já transformado em chuva a bater nas capotas dos carros, no empedrado e nas janelas. Queria abraçá-la, passar-lhe as mãos pelos cabelos escuros e anelados, beijar-lhe as sobrancelhas finas e dizer-lhe que estava tudo bem. “Não estou. Nunca estou distante de ti, meu amor. Apenas me recolho às minhas luzes macias, hoje preciso delas e do cinzento desta tarde que me visita.”

Beijou-o Ana do outro lado da linha, até amanhã, meu amor, não apanhes frio. Não chores, nem soluces baixinho que amanhã não chove mais.

Promessas, mas havia que fazê-las para dar consistência à vida pequena. Querer muito fazer alguma coisa por alguém e comprometer-se a fazer e depois definir como objectivo chegar lá e consegui-lo. Era um acto de altruismo, pequeno que fosse, tinham-lhe ensinado mal que não se deve prometer nada. O coração mandara prometer e prometera. O vinho, as mãos passadas nos cabelos de Ana nas noites frias, uma troca de olhares muda e que tudo tem despejara-lhe o amor eterno e difícil no regaço.

O som da chuva deixara de se fazer ouvir: o Inverno mandara abrandar lá fora, por alguns momentos, as lágrimas celestes e as pessoas na rua fechavam os guarda-chuvas e atravessavam as passadeiras sem se molhar. Bebeu o último trago do chá quente e reconfortante, fechou os olhos e adormeceu.