25 de nov. de 2009

Chopin


Era aquele desconforto que não conseguia escalpelizar em palavras. Aquela sensação de receio, perigo, ameaça, sensação indefinida que não sabia atribuir a nada de concreto. Três passos fora da rota do dia-a-dia reavivara-lhe memórias do passado construídas de sons familiares e música debaixo dos dedos. Das poucas vezes que chorara um choro convulsivo e irracional fora agarrada a uma aparelhagem antiga que debitava chopinadas sublimemente xaroposas pelas mãos de Horowitz, e as lágrimas rolavam e atropelavam os soluços que lhe estalavam na garganta em golfadas sufocantes. Mais de vinte anos se tinham passado desde então e nunca mais nada do género se passara. Chopin passara a ser um amigo meio esquecido na prateleira das partituras, reanimado de vez em quando no teclado através de uma mazurka aqui, um prelúdio ali, passara-lhe com os anos a ligação anímica e violenta que tinha à sua música.

Regressara-lhe em doses milimétricas e escondidas entre as núvens do tempo o sofrimento inexplicável que aquela música lhe trazia. Nada de paz, era uma beleza torturada que lhe saía debaixo dos dedos de cada vez que o tocava, que lhe feria os ouvidos numa reacção sado-masoquista de cada vez que o ouvia. No entanto, de tanto repetir, banalizara-se o sofrimento e o repertório e deixara-o de o ser. Simplesmente. Podia ser isso, a banalização, a habituação, como aconteceu depois da Guerra da Bósnia, da Guerra do Golfo em directo, a banalização da violência e dos ataques dos mísseis em directo deixaram de nos violentar a alma à hora do jantar para passar a fazer parte da música de fundo da violência habitual do mundo.

Como explicar isto, nada disto é explicável, tal como o amor não é explicável, tal como as contracurvas de uma existência que arrisca os passos do dia-a-dia não são explicáveis, acontecem. Esta sua busca incessante da racionalidade para explicar o que não se explica esvaziou-a de sentido durante tempo demais, retirando-lhe o entusiasmo pela novidade, o mundo deixou de ser uma novidade pelo barulho constante que emite e as banalidades que grita nos microfones, nas televisões e nas conversas de manicure.

Chopin, agora, regressado dos mortos enterrados na prateleira das edições Urtext, dedilhação sobre dedilhação, anos de morosidade e estudo para o meter debaixo de mãos, trouxera-lhe a inquietude daqueles breves minutos a soluçar descontroladamente abraçada à aparelhagem antiga. Ainda se lembra, nem sequer era um LP, uma cassete dos Prelúdios, o sorriso em V do Horowitz recortado entre os dois orifícios da fita magnética e as lágrimas a escorrerem feitas estúpidas numa catarse sem qualquer tipo de explicação ou lógica.

Chora-se, diz-se, porque se sofre de uma coisa qualquer específica, porque se perde isto ou aquilo, porque não se consegue tal e tal, porque se é agredido, ou injustiçado, ou falsamente acusado, o rol não acaba mais do que dá origem a tanta lágrima que para aí anda. Portanto, chorar agarrada a uma aparelhagem a debitar Chopin é, concerteza, sinal de esquizofrenia, doença mental aguda ou outra coisa qualquer que se trata com remédios daqueles que só se vendem com receita médica.

Hoje viera-lhe esse episódio à cabeça e, mais uma vez, ficara a tamborilar, inquieta, desconfiada desta sua alma estranha que não sabia chorar pelas coisas normais porque se chora, e que só abria as comportas dos olhos por razões irracionais que a mente desconhece e o coração não decifra. O mal do mundo – esse, quem sabe, e pelo qual chorava espaçadamente e que, sem aviso, a fazia verter lágrimas abundantes – estava contido naqueles prelúdios tocados pelo pianista russo naquela cassete velha rasgada pelo seu sorriso sardónico.

O mal do mundo e a tristeza feitos música nunca antes nem depois ultrapassados.

23 de nov. de 2009

Na minha rua

Ponho os dedos ao teste e observo o que sai. Sento-me porque não me apetece fazer mais nada e quebro à vontade da preguiça, cedo-lhe o espaço que precisa para se instalar em mim uma vez mais. É um novo hábito este, o da preguiça, e que me sabe tão mal. Arranjo assim justificação para fazer qualquer outra coisa que não seja nada, e escrevo, deixando os dedos vaguear no teclado à procura de um rumo.

Sete cintilações de luz diversas viram os meus olhos hoje no intervalo das árvores da minha rua. Uma rua de Lisboa com pessoas e carros e casas e árvores e sem-abrigo aos gritos nas esquinas porque até a preguiça da loucura os abandonou e gritam por, presumo, não terem mais que fazer. São dois os que gritam: um abre a boca e berra, solta uns urros altos e ritmados, de repente, quando menos se espera. Urra o sem abrigo no seu canto imundo que ninguém cuida, à porta do banco milionário que não o vê. O outro estacionou há meses à porta do Mini-Preço e grita para os clientes, sorrindo ao mesmo tempo. Grita frases ininteligíveis, solta dizeres em espanhol da boca sempre sorridente, dentes espantosamente brancos contra a pele negra e luzidia. Barrete na cabeça, estende um copo de plástico que nos empurra cara adentro obrigando à moeda. Não dou. Empurrei-o no outro dia, “hey, tira a mão!” ameacei com um ar mau, que me incomodava tanto grito à porta das minhas laranjas e dos meus bifes e requeijões. Tinha-lhe dado um euro, um ou dois dias antes, missão cumprida, agora não me grites mais. Mas lá estava ele, e está, sempre a gritar. “Aaaaahhhhhhhhh, ióoooooooooooooohhhhhhhh!!
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!” “Heeeeeeeeeeeeeeeeeeeee, ióoooooooooooooooohhhhhhhhhh!!!!!!!!!!!!!! E não pára, fica ali aos gritos. Depois cala-se e pede “moneda, señorita”. Não tem mais de 25 anos, são e escorreito do pescoço aos pés e cabeça avariada para além de todo o remédio.

Venho para casa carregada de sacos de supermercado e eles gritam lá ao fundo, um na esquina, o outro no passeio à frente do Mini-Preço. Canso-me da crueza da vida e da crueldade e injustiça e blá, blá que todos sabemos raio de vida insana, e os outros que não gritam e convivem de garrafa na mão nos bancos nojentos de dejectos de pombo debaixo das árvores. Estendidos lá ficam tardes inteiras debaixo dos pombos de garrafa na mão e conversam as suas conversas de sem-abrigo como nós temos as nossas conversas abrigadas entre quatro paredes de tijolo que nos isolam da chuva e do mau cheiro da sarjeta.

Está frio hoje, talvez não tanto quanto seja razoável para que justifique estar enrolada em mantas de lã aos quadrados, mas tenho frio. O frio até certo ponto acorda-me os sentidos e aguça-me a mente e hoje serve para me dar um ímpeto acrescido a fazer as coisas que tenho de fazer. Não dou tréguas à preguiça, afinal de contas, que se escapava da lâmpada mágica do Aladino que tenho ali atirada para um canto, a preguiça que sai lá de dentro de quando em vez em forma de génio e me promete desejos instantâneos sem eu ter de fazer nada. Vade retro, hoje não tens nada de mim: estou em modo eficiente e acabo agora isto como comecei: porque sim, para testar os meus dedos que são autónomos do meu cérebro e escrevem o que lhes apetece neste teclado branco mas que já vai precisando que vá buscar um algodão embebido em álcool para lhe puxar o lustro. Que é como quem diz, limpar as manchas cinzentas que os meus dedos lá têm deixado ao longo dos dias de tanto lá baterem.

Na minha rua calaram-se os urros do desespero ou da insanidade, há muitas horas. Dormem, decerto, no torpor do vinho de pacote estendidos na imundice da calçada já castanha que ninguém já quer lavar. Mas é uma rua bonita, como a vida, suja e limpa, triste e alegre, e barulhenta de gente e coisas como se quer uma rua de Lisboa onde a luz cintila em sete cores por entre as folhas das árvores. Gosto da minha rua e amanhã, em calhando, sorrio de volta ao residente da porta do Mini-Preço e talvez, quem sabe, lhe dê mais uma moeda.