9 de out. de 2009

O Gnomo


Tinha passado a noite a arrastar as fronteiras do tempo para além dos limites do possível. Olhou para o relógio: eram quase seis da manhã, e pensou então que era boa hora para tomar o pequeno almoço: meio pacote de batatas fritas, uma pêra, um folhado de espinafres há 4 dias no frigorífico, tudo isto bem regado com uma caneca de café com leite para ajudar a dormir. Pois tinha de se deitar, por ter de se levantar daí por pouco. Dormiria umas horas, poucas que fossem, para agarrar o mundo às 9h00 da manhã todo de seguida, tarefas encadeadas umas nas outras, tarefas das mais diversas naturezas.

Olhou para o espelho, tinha os dentes verdes. Espinafres, concerteza. Não eram bem os dentes que estavam verdes, era mais uns farripos de espinafres entre os dentes e pensou, por momentos, avistar também uns restos de batatas fritas nos molares de baixo. Que miséria. Devia estar a dormir há horas e no entanto via-se agora ao espelho e não conseguia saber quem era. Tinha o nome bem presente, e os do resto da família, sabia a morada de cor, como de cor conhecia os ingredientes dos cremes que vendia e de cor sabia o valor das facturas a pagar no final de cada semana. Mas não sabia quem era. Quanto mais olhava para os dentes verdes, mais a sua imagem no espelho se desfazia e se tornava numa névoa indistinta que, por sua vez, tomava corpo numa espécie de gnomo da floresta, já as orelhas se alongavam, conseguia agora distinguir a forma pontiaguda que tinham tomado, o cabelo crescera de repente e na cabeça surgira um barrete daqueles dos contos de fadas. Com guizo e tudo.

Aborreceu-se daquilo tudo e voltou-se para sair da casa de banho mas o guizo soou. Parou. Não podia ser, era uma fantasia das seis da manhã depois de uma noite a arrastar fronteiras de tempo. Deu mais dois passos, o guizo lá estava, tlim, tlim, dois passos, tlim, tlim.

Não se quis ver ao espelho de novo, fechou os olhos, lavou os dentes na esperança de retirar o verdete dos espinafres e saiu a correr para a cama onde se deitou e se escondeu entre os lençóis. Nada a fazer: o guizo tocou furiosamente enquanto corria para o quarto, sentiu o barrete de gnomo bem enfiado na cabeça e, quando por fim, estava mesmo quase a adormecer, lançou as mãos às orelhas e apercebeu-se que tinham mesmo crescido e estavam duras, pontiagudas e, pior que tudo, peludas também. Estarrecida de espanto e maravilha pelo tédio dos dias contados se ter agora quebrado, adormeceu por fim feliz.

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