10 de nov. de 2009

O fim do Capitão Almeida


Parecia feito de aparite e tinha um não sei quê de bloco lunar, rugoso, inacabado. Deixara a coragem à deriva, sem saber como a usar que não fosse na defesa desesperada da imagem que as mentiras de uma vida tinham ajudado a forjar. Cuspia glórias a cada passo e cosia galões na farda com a contagem saudosa dos despojos do passado. Era patético na sua vã tentativa de ganhar loas e amizades de circunstância para que, caída a noite, pudesse aguentar o peso de uma vida falseada, sem nexo, sem ventura, sem futuro.

Entrou, assim, o capitão, na efémera tenda de campanha que montara à beira da vida e viu-se como pela primeira vez ao espelho. Pegou na navalha da barba para se escanhoar a preceito para mais um encontro fortuito, antecipando o roçagar dos cetins e o perfume da carne tenra, exalando almíscar e rosas.

De repente, morreu.

Não contara com isso. Pensara poder perpetuar o jogo de maquinações e estratégia de uma teia complexa e bem montada que sempre lhe trouxera proventos gordos em todas as áreas da vida. Adiara sempre para o dia seguinte o polimento da superfície do espelho para que lhe avivasse a memória e aguçasse a visão daquilo que, na realidade, era. Tinha-se tornado num monstro e suspeitava-o quando o silêncio se fechava sobre o mundo e o remorso tolhido de dor espreitava debaixo da almofada. Era do que tinha mais medo, era o seu único medo: que o mundo o soubesse e que ele mesmo, sem saber como nem porquê, disso mesmo se apercebesse um dia, a ponto de se redimir.

Olhou para o próprio corpo tombado por cima do resguardo da banheira, a garganta aberta, trespassada pela navalha da barba, os olhos extintos de vida, as mãos suadas a frio, o medo estilhaçado em fragmentos de vidro que se confundiam com o espelho agora quebrado que lhe atravessava o rosto.

A sombra que deixou atrás depressa se apagou. Não teve tempo de ver mais nada, e desapareceu, agora sim, dentro de si mesmo, não deixando pegadas no mundo de que a História, alguma vez, quisesse falar.


18 de Julho de 2009

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