21 de set. de 2010

Onde estaria?

Escondera-se, não sabia onde. Se calhar por trás daquele alinhamento de seixos polidos à beira da duna, tão certinhos que lá estavam a dormir ao sol nos dias compridos e nas noites frias. Ou para além das paredes grossas da casa escura onde tentava tricotar a nova camisola de vida à medida do dever dos dias.

Escondera-se, onde andaria? Não o via, aquele desejo de qualquer coisa mais que não fosse o remendar daquela cauda imensa do rasto imenso da vida passada. Não queria viver para remendar. O sapateiro remendão não precisa mais que uma lamparina a óleo rançoso, linha, couro e as agulhas certas para tapar os buracos do uso e disfarçar a podridão do couro. Uma lamparina de óleo rançoso não mais ilumina que meia dúzia de palmos à frente do nariz. Não queria viver para remendar e acendia as luzes todas pela casa fora, contrariamente às mais sensatas recomendações de poupança de energia, recursos e dinheiro, o planeta que aguentasse pois a sua própria vida precisava de luz que lhe mostrasse o caminho mais que meia dúzia de palmos. O caminho de casa, dentro de casa, de um corredor ao outro, de uma sala à outra, que importava. Luz. E mesmo com tanta luz, escondera-se. Onde estaria?

Não se lembrava de ter sossegado a alma dentro de uma fiada de gavetas bem trancadas à chave mas se calhar era isso que tinha acontecido. Acendeu as luzes todas e procurou o armário, o móvel de gavetas, as gavetas, lá estavam as gavetas da memória armazenada que a cada dia se desvanecia, apagando-se um passado para dar lugar a outro. E lá estava a gaveta do futuro prometido onde o caminho da revelação se desdobrava límpido e claro debaixo dos pés, e era só segui-lo, pois seguia, vincado e nítido, pela vida fora. E era só ver onde iria dar, mas não, estava trancado na gaveta enquanto segurava a linha e o couro e a lamparina de óleo rançoso e os sapatos cambados de tanta vida pisarem.

Onde estaria? A chave estava na gaveta, mas deixou ficar a dúvida. Provavelmente, aquela gaveta mais não tinha dentro que meia-dúzia de pastas antigas com declarações de IRS preenchidas à mão e extractos bancários em escudos.

Por cima da cabeça quatro andares de tijolo e betão e só então por cima o céu.

Onde estaria aquele céu? Desmaiado agora pelas luzes amarelas de Lisboa, desaparecera de vista, sumira-se num sopro de desalento. Para voltar a acordar na manhã seguinte a espreguiçar as nuvens que teimavam em anunciar o Outono para logo fugirem e darem lugar a dias radiosos e quentes, se passados ao fresco, ou infernais e stressantes, se tivesse de se meter no carro sem ar condicionado e atravessar a cidade histérica da rentrée política e do regresso às aulas no Continente.

Estaria bem onde estivesse, e que descansasse em paz! E agora iria atacar o visco sangrento que voltara em vingança furiosa e não parava de escorrer, lavada pelas águas santas da banheira que não paravam de correr.

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