Era aquele desconforto que não conseguia escalpelizar em palavras. Aquela sensação de receio, perigo, ameaça, sensação indefinida que não sabia atribuir a nada de concreto. Três passos fora da rota do dia-a-dia reavivara-lhe memórias do passado construídas de sons familiares e música debaixo dos dedos. Das poucas vezes que chorara um choro convulsivo e irracional fora agarrada a uma aparelhagem antiga que debitava chopinadas sublimemente xaroposas pelas mãos de Horowitz, e as lágrimas rolavam e atropelavam os soluços que lhe estalavam na garganta em golfadas sufocantes. Mais de vinte anos se tinham passado desde então e nunca mais nada do género se passara. Chopin passara a ser um amigo meio esquecido na prateleira das partituras, reanimado de vez em quando no teclado através de uma mazurka aqui, um prelúdio ali, passara-lhe com os anos a ligação anímica e violenta que tinha à sua música.
Regressara-lhe em doses milimétricas e escondidas entre as núvens do tempo o sofrimento inexplicável que aquela música lhe trazia. Nada de paz, era uma beleza torturada que lhe saía debaixo dos dedos de cada vez que o tocava, que lhe feria os ouvidos numa reacção sado-masoquista de cada vez que o ouvia. No entanto, de tanto repetir, banalizara-se o sofrimento e o repertório e deixara-o de o ser. Simplesmente. Podia ser isso, a banalização, a habituação, como aconteceu depois da Guerra da Bósnia, da Guerra do Golfo em directo, a banalização da violência e dos ataques dos mísseis em directo deixaram de nos violentar a alma à hora do jantar para passar a fazer parte da música de fundo da violência habitual do mundo.
Como explicar isto, nada disto é explicável, tal como o amor não é explicável, tal como as contracurvas de uma existência que arrisca os passos do dia-a-dia não são explicáveis, acontecem. Esta sua busca incessante da racionalidade para explicar o que não se explica esvaziou-a de sentido durante tempo demais, retirando-lhe o entusiasmo pela novidade, o mundo deixou de ser uma novidade pelo barulho constante que emite e as banalidades que grita nos microfones, nas televisões e nas conversas de manicure.
Chopin, agora, regressado dos mortos enterrados na prateleira das edições Urtext, dedilhação sobre dedilhação, anos de morosidade e estudo para o meter debaixo de mãos, trouxera-lhe a inquietude daqueles breves minutos a soluçar descontroladamente abraçada à aparelhagem antiga. Ainda se lembra, nem sequer era um LP, uma cassete dos Prelúdios, o sorriso em V do Horowitz recortado entre os dois orifícios da fita magnética e as lágrimas a escorrerem feitas estúpidas numa catarse sem qualquer tipo de explicação ou lógica.
Chora-se, diz-se, porque se sofre de uma coisa qualquer específica, porque se perde isto ou aquilo, porque não se consegue tal e tal, porque se é agredido, ou injustiçado, ou falsamente acusado, o rol não acaba mais do que dá origem a tanta lágrima que para aí anda. Portanto, chorar agarrada a uma aparelhagem a debitar Chopin é, concerteza, sinal de esquizofrenia, doença mental aguda ou outra coisa qualquer que se trata com remédios daqueles que só se vendem com receita médica.
Hoje viera-lhe esse episódio à cabeça e, mais uma vez, ficara a tamborilar, inquieta, desconfiada desta sua alma estranha que não sabia chorar pelas coisas normais porque se chora, e que só abria as comportas dos olhos por razões irracionais que a mente desconhece e o coração não decifra. O mal do mundo – esse, quem sabe, e pelo qual chorava espaçadamente e que, sem aviso, a fazia verter lágrimas abundantes – estava contido naqueles prelúdios tocados pelo pianista russo naquela cassete velha rasgada pelo seu sorriso sardónico.
O mal do mundo e a tristeza feitos música nunca antes nem depois ultrapassados.